DESTA “VIAGEM NA ARGILA” SURGE UM
JOZAILTO LIMA FEITO DO PURO BARRO
Devo advertir, a tarefa de ler poesia para criticá-la mais adiante jamais me passou à cabeça. Desvendar os mistérios do coração e da alma de um poeta requer afastar-se da realidade e adentrar em sua essência. A inteireza da forma lírica a lhe induzir o fazer poético nem sempre salta aos olhos! A incompreensão da poesia advém daí. Os poetas são antigos, como antiga é a vida, o sublime e o profano. Um homem realista, sincero consigo próprio e os demais, direto e eficaz nas palavras, teria a competência dos bons críticos para interpretar os versos de um poeta e traduzir em palavras o significado de sua prosa? Veremos...
Sempre me questionei se o velho dilema da essência e da existência poderia ser explicado pela narrativa poética. Para encontrar a resposta, percebi que seria necessário mais do que a simples leitura da poesia. O coração do homem tem catedrais imensas, ainda pouco exploradas na inteireza. Em “De Profundis”, guiado por dolorosa paixão, outras vezes pela raiva e compaixão, Oscar Wilde sugere como aflora o sujeito poético na alma humana. Diz o dramaturgo: “Por detrás da alegria e do riso, pode haver uma natureza vulgar, dura e insensível. Mas por detrás do sofrimento, há sempre sofrimento. Ao contrário do prazer, a dor não usa máscara.”
Então, o “sentimento” deveria ser o Norte... Todavia, analisar a coletânea de poemas de Jozailto Lima reunidas em “Viagem na Argila” não constituiu tarefa simples. Nada é fácil quando a alma é grande! O penar existe no poeta, mas está dissimulado... O autor ironicamente diz que “poesia não precisa de alma”. Estaria apenas fingindo? Vem certamente de alguma de suas muitas “almas” a angústia, a sofreguidão do homem sertanejo, de cuja terra seca Jozailto Lima peneira pedregulhos e os transforma em... “peixe no deserto:
só sei que quando menos espero, ei-la-me aqui e ali
– peixe inteiro, com todas suas espinhas borbulhando
na minha garganta – pulsante, querente, pedinte
em fardos e flagelos. de repente, faz-se meu pote instantâneo
de luz e explosão. de rodilha em mãos,
tecida daqueles meus panos mais imprestáveis,
quero-me sempre pronto a alçá-la do nada
à página, do breu à luz, bastando o mais simples bote.

[arte poética (a rodilha e o pote), Jozailto Lima]
Analisar textos poéticos exige submersão e submissão à poesia e ao poeta. As experiências vividas estão por toda parte na obra de Jozailto Lima. Ao não negá-las, colocou sua alma nos lábios da própria vida. A negação da alma, que seja por um único instante da existência, cega o coração e sem a visão do coração, de nada serve possuir o atento “olho de sabre”:
lama e alma
são irmãs
na mesma
carne calma.

Na idêntica lâmina
linguística, suja ou alva,
e no alinhamento de eles, de as e emes.

Alma e lama:
tudo clama
a mesma tábula
onde o raso se afunda
e o fundo se arrasa.

[alma e lama, Jozailto Lima]
Poderia citar muitos outros bons exemplos para expressar quão maravilhoso é ler (e apreciar) a poesia de Jozailto Lima. Nela tudo está bem encaixadinho, como se o poeta – modernista, sem afetação – fosse só um construtor de letras. Engana-se, porém, quem não percebe a sombra dele mesmo no fôlego daquele compasso com descompasso, da alegria e euforia que descamba em tristeza para, imediatamente, cair na gargalhada, interpelando o “outro”, que em essência é sua própria alma gêmea. Ele... e ponto!
Nesta “Viagem na Argila”, Jozailto Lima alude de que barro saímos muitos de nós nordestinos, de como viramos “utensílios” para a fornalha da vida. Jocoso, brinca quando nos transformamos em serventia ao desejo alheio e nos faz imaginar como ao barro voltaremos, se a verdade estiver certa quanto a existência de algo mais que... o NADA. Assim, mais do que poeta fingidor da dor, Jozailto Lima é o filósofo arguto e generoso nascido desse barro – e é neste exato ponto que sua poesia cresce e se eterniza.
Por David Leite | 13/10 às 20h10